domingo, 21 de setembro de 2014

Essa doença filha da puta atrás da qual o Diabo se esconde!

"…Foi Aureliano quem concebeu a fórmula que havia de os defender durante vários meses das evasões da memória. Descobriu-a por acaso. Perito da insónia por ter sido dos primeiros, aprendera na perfeição a arte da ourivesaria. Um dia andava à procura de uma bigorna pequena que costumava usar para laminar os metais e não se recordou do seu nome. O pai disse-lho:"Tás." Aureliano escreveu o nome num papel e colou-o na base da bigornazinha: Tás. Assim teve a certeza de não o esquecer no futuro. Não lhe ocorreu que aquela fosse a primeira manifestação do esquecimento, porque o objecto tinha um nome difícil de recordar. Mas, poucos dias depois, descobriu que tinha dificuldade em lembrar-se de quase todas as coisas do laboratório. Então marcou-as com o nome respectivo, de modo que lhe bastava ler a inscrição para as identificar. Quando o pai lhe comunicou o seu alarme por ter esquecido até os acontecimentos mais impressionantes da sua infância, Aureliano explicou-lhe o seu método e José Arcadio Buendía pô-la em prática por toda a casa, impondo-o mais tarde a toda a aldeia. Com um hissope cheio de tinta , marcou cada coisa com o seu nome: mesa, cadeira, relógio, parede, cama, caçarola. Foi ao estábulo e marcou os animais e as plantas: vaca, cabra, porco, galinha, jucá, malanga, bananeira. Pouco a pouco, estudando as infinitas possibilidades do esquecimento, deu-se conta de que podia chegar o dia em que se reconhecessem as coisas pelas inscrições mas em que não se lembrasse da sua utilidade. Então foi mais explicito. O letreiro que colocou no cachaço da vaca era uma prova exemplar de como os habitantes de Macombo estavam dispostos a lutar contra o esquecimento: É esta a vaca. É preciso ordenhá-la todas as manhãs para que dê leite e é preciso ferver o leite para o misturar com café e fazer café com leite. Assim continuaram a viver numa realidade escorregadia, momentaneamente capturada pelas palavras mas que havia de fugir-lhes irremediavelmente quando se esquecessem dos valores da letra escrita."
in Cem anos de solidão, Gabriel Garcia Marquez

10 comentários:

  1. Impressionante. Que angústia!

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  2. Penso nisso todos os dias, sempre que quero exprimir um pensamento e as palavras me fogem...
    Ainda hoje comentei nO Xilre que não sou oleira do meu corpo. Sempre defendi que o futuro somos nós quem o escreve, com palavras das escolhas que vamos fazendo. Porque queremos, porque podemos. Mas contra bichos destes que corroem por dentro, deixando-nos apenas com a casca da nossa sombra, somos completamente impotentes.

    Muitos beijinhos, muitos, muitos mesmo. E abraços e Xi corações também, pelo menos enquanto me lembro de como são e a que sabem. :)

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    1. Muitos, muitos, muitos!
      Todos e quantos quisermos e formos capazes de dar!
      <3

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  3. A minha mãe tem uma amiga com Alzheimer que já não conhece ninguém...

    E a minha velhota adoptiva está a caminho do esquecimento total. Durante seis meses cuidei dela, até que tive que a levar para um lar, e não desejo essa angústia a ninguém.

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    1. Todos temos casos próximos…e é terrível ver o miolo a ir-se e a deixar só a casca…
      Imagino que ao próprio quando tudo se apaga, já não custe, imagino, mas para quem o observa é tão, mas tão doloroso…

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  4. Uma grande lembrança essa. Se à vida lhe aprover levar-me as memórias, que sejam as da letra escrita, as últimas a ir.

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  5. Dói...dói muito. Fui criada e educada pela minha avó, só mais tarde fui para casa dos meus pais já era uma garota. Hoje a minha avó não sabe quem sou, não sabe o meu nome e a minha cara ou lágrimas não lhe diz nada! Dói...dói muito.

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